CONCEITO MÍNIMO DE DEMOCRACIA
Em O futuro da democracia, Bobbio define o regime
democrático primeiramente como um conjunto de regras de procedimento para a
formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a
participação mais ampla possível dos interessados.
Esta é uma definição procedimental, ou seja, que foca em
primeiro lugar no processo pelo qual as decisões coletivas são tomadas, antes
da consideração de seu conteúdo. O filósofo italiano assim o faz por entender
que este é o melhor critério disponível para contrapor à democracia todo o
conjunto das formas de governo a ela antitéticas, que poderíamos sintetizar
como regimes autocráticos – isto é, o poder que parte do alto, em oposição ao
poder que vem de baixo.
Nesse sentido, numa primeira aproximação, a Democracia pode
ser caracterizada como um conjunto de regras fundamentais que estabelecem quem
está legitimado a tomar as decisões coletivas e a partir de quais procedimentos
essas decisões poderão ser tomadas:
Todo grupo social está obrigado a tomar decisões
vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria
sobrevivência, tanto interna como externamente. Mas até mesmo as decisões de
grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para
que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser
aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não
importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os
indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros
do grupo, e à base de quais procedimentos.
O mínimo comum para que uma sociedade seja considerada
democrática é, portanto, a existência de regras que delimitam o chamado jogo
democrático. Todos os atores que dele participam estão sujeitos a essas regras
e devem obedecê-las. E quais seriam essas regras?
Como vimos, as regras para determinar aqueles que decidirão
(eleições livres, diretas, multipartidárias etc.), de forma que se alcance a
maior quantidade e pluralidade possível de participantes, são de fato
essenciais, mas não são as únicas. É fundamental determinar também o processo
pelo qual serão consideradas válidas as normas e decisões que vincularão todo o
conjunto da sociedade.
Essa validade não se dá em razão do conteúdo da decisão, ou
por meio de qualquer juízo de valor, mas sim pela verificação procedimental –
se foram seguidas todas as etapas e cumpridos todos os requisitos necessários
para sua aprovação. Se as pessoas ou entidades tinham legitimidade para tomar
aquela decisão e se foram seguidos os procedimentos adequados, tal decisão ou
norma será considerada válida e, portanto, se torna a priori vinculativa a seus
destinatários.
Esses critérios são importantes porque afastam dos regimes
democráticos diversas tendências e aspirações autoritárias que ressurgem nas
democracias ocidentais, comumente adornadas por um discurso de ineficiência do
Estado, lentidão burocrática, corrupção, falta de legitimidade popular do
judiciário e assim por diante.
Problemas estes que, desconectados de uma compreensão ampla
dos desafios da democracia e do Estado moderno frente aos mandamentos
econômicos e sociais, são mobilizados e invocados por setores da sociedade que
efetivamente não procuram solucioná-los no interior da institucionalidade
democrática. Pelo contrário, o discurso que aponta os “entraves da democracia”,
sua morosidade e falência enquanto sistema de governo, é sintoma de um
embrionário deslocamento para regimes de exceção, de inobservância às regras do
jogo.
ESTADO LIBERAL: O PRESSUPOSTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
Vale destacar que a Democracia não se resume a esses
critérios formais. Como nos mostra Bobbio, o Estado Democrático tem como
pressuposto histórico e jurídico o Estado Liberal e todas as suas conquistas em
termos de liberdades individuais e garantias fundamentais, tais como: liberdade
de opinião, liberdade de expressão das próprias opiniões, liberdade de reunião
e de livre associação, liberdade de locomoção, pluralidade de partidos, livre
concorrência entre os partidos no jogo democrático, eleições periódicas e
sufrágio universal, livre debate de ideias, publicidade do processo decisório e
do conteúdo das decisões e assim por diante.
De acordo com o filósofo italiano, a experiência histórica
demonstra que somente onde (r)existiram esses direitos invioláveis dos
indivíduos a Democracia pôde permanecer com suas regras procedimentais mínimas
de aferição. Existiria então uma reciprocidade entre a definição procedimental
mínima dos regimes democráticos e as garantias e direitos individuais fruto do
estado liberal. Estes últimos não seriam exatamente regras do jogo democrático,
mas constituiriam os pressupostos necessários para que ele possa ser jogado:
Estado liberal e estado democrático são interdependentes em
dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que
são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder
democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no
sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a
persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável
que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia,
e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de
garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência
está no fato de que estado liberal e estado democrático, quando caem, caem
juntos.
As regras do jogo são, portanto, o fundamento dos regimes
democráticos, os parâmetros por meio dos quais a luta política deverá ser
travada. Respeitadas as regras estabelecidas, a decisão da maioria será
coletivamente vinculante, mas isso não significa a extinção dos direitos e
garantias das minorias, tampouco a proibição ou a anulação do dissenso.
CONFLITO, DISSENSO E OPOSIÇÃO
As democracias aceitam a existência dos conflitos sociais e
procuram desenvolver métodos para resolução não violenta desses conflitos. A busca
por um consenso majoritário nos regimes democráticos em nada tem a ver, pois,
com a lógica do inimigo, da eliminação de adversários políticos e daqueles que
discordam da maioria estabelecida. Esta é a via autocrática de encaminhamento
dos conflitos, de acordo com a qual não devem ser observadas quaisquer regras
mínimas para a tomada de decisões e seus procedimentos. Não à toa as decisões
autocráticas ocorrem normalmente em segredo, escondidas do público.
A democracia requer rotineiramente o estabelecimento de
consensos, principalmente em torno das regras que estabelecem a competição
entre os atores. Consequentemente, seu pressuposto é que prevalece na sociedade
o dissenso, a oposição, a competição, a concorrência e o conflito de
interesses. A tentativa de se eliminar violentamente esses fatores sociais
constitui um ataque aos preceitos democráticos e uma violação de suas regras
fundamentais.
Ademais, como bem observa Bobbio, que valor tem o consenso
onde o dissenso é proibido ou mesmo punido? Seria este um consenso alcançado
pela convicção e vontade individual ou por mera subserviência passiva do alto
poder? O que resta de estado liberal em tais condições?
PASSOS SEGUINTES PARA O JOGO DEMOCRÁTICO
As regras do jogo democrático estão hoje amplamente
disseminadas pelo mundo e incorporadas em Constituições e leis fundamentais de
diversos países. Como vimos até aqui, e continuaremos a ver nos próximos textos
desta seção, o regime democrático não se limita ao respeito das regras do jogo,
mas sem elas é muito difícil que se continue a tratar de Democracias.
Nesse sentido, seguiremos nossa análise no próximo texto por
meio das Promessas não cumpridas da Democracia. Por enquanto, esperamos ter ao
menos indicado como a aparente simplicidade dos regimes democráticos, que por
vezes tomamos como algo dado e pronto, velam um sistema complexo e
contraditório, que está sob constante atualização, conforme mudam as condições
e os desafios sociais impostos por cada época.
REFERÊNCIA
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco
Aurélio Nogueira. – 13ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015. P. 35, 38, 39, 98
e 99.
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